Bluetauro escreveu:http://ano-zero.com/pokemon-go/
Pokémon Go e a sociedade dos imbecis
O que o uso da realidade aumentada para adultos caçarem monstrinhos imaginários ao redor do globo revela a respeito de nossa sociedade?
Em 1650 AC, tudo ia muito bem no Egito.
Gozando das virtudes de um império politicamente estável e de um complexo sistema de irrigação, os egípcios entregavam-se ao conforto e ao prazer: mesmo nos bairros mais pobres, os arqueólogos encontraram cosméticos, perfumes e estatuetas decorativas para decorar o hall de entrada das moradias.
No mercado mais próximo de qualquer distrito, podia-se comprar alimentos em abundância, bebidas alcoólicas como cerveja e sofisticados utensílios para cozinha. A vida era boa para os egípcios, e eles ficaram acomodados e confiantes. Nem mesmo as tribos selvagens que ameaçavam suas fronteiras lhes tiravam o sono – afinal, tinham um poderoso exército para protegê-los.
Até o dia que uma horda de selvagens zé-ninguéns apareceu no horizonte. Eram forasteiros muito primitivos e fanáticos, um povo de origem mestiça, com traços asiáticos e semíticos.
Seu estilo de vida, se comparado com o luxo e conforto dos egípcios, era de quinta categoria. Sua única característica notável era uma particular preferência pela violência extrema e o manejo de carruagens de guerra. Os egípcios não os consideravam uma ameaça digna de preocupação.
Esse povo ficou conhecido como Hicsos. Ao observarem o Egito, perceberam uma população rica e acomodada, habituada demais ao conforto. Encararam os egípcios como presas de carne tenra, e em pouco tempo foram os responsáveis pela destruição da poderosa Terceira Dinastia do Império Egípcio. Os hicsos conquistaram o Egito e ficaram mais de um século no poder.
hicsos pokémon go
Por que estou contando essa história para falar do Pokémon Go?
Porque quando vi essas duas cenas a seguir, de americanos adultos (antes: de ocidentais típicos) correndo em frenesi, feitos zumbis, para “capturarem” monstrinhos inexistentes que apareceram em parques, imaginei o que um soldado do ISIS pensaria a respeito:
E o que o soldado do ISIS veria é o que obviamente qualquer pessoa de outra cultura vê: um povo idiotizado, infantilizado, mimado por uma sociedade de consumo que nos imbeciliza para poder lucrar.
Veria presas fáceis, cordeiros gordos e tenros, tão acomodados aos luxos e mimos de sua civilização que são incapazes de enfrentar adequadamente o ataque de qualquer lobo faminto e cheio de fúria.
Tão perdidos em retórica e debates políticos ideológicos que se perderiam em discussões vazias e academicistas a respeito da fisiologia dos lobos antes de perceberem uma mandíbula mordendo seu calcanhar.
E mesmo com um reles caminhão um só lobo esquálido é capaz de fazer um estrago nessa multidão de hipnotizados que vivem em uma fantasia de contínua festividade.
Mas sequer seria preciso ser de outra cultura para perceber o quão ridículo e ao mesmo tempo insano é a ideia de adultos caçando monstros imaginários pela rua.
O que nossos bisavós ou tataravós diriam se assistissem tal pantomima do Pokémon Go?
“O quê? Foi para isso que passei privações, fiz sacrifícios, e lutei arduamente sustentando meus filhos durante décadas? Para que meus descendentes se tornassem essa horda de bundinhas que correm pelos parques e ruas atrás de bichinhos imaginários?”
É verdade que a tecnologia criadora da realidade aumentada é promissora e magnífica.
Porém, assim como a internet poderia ser algo promissor e magnífico mas em 99% dos casos é apenas uma nova forma de compartilharmos lixo e alimentarmos ódios sectários, quando uma equipe de seres humanos se dedica a desenvolver o primeiro grande projeto de realidade aumentada, o que ela cria e faz grande sucesso?
Não, não foi uma nova forma de interagirmos e colaborarmos coletivamente para construirmos cidades e comunidades mais engajadas, não foi uma forma inventiva de auxiliarmos o próximo e ampliarmos a qualidade de vida reciprocamente.
Não, o que a equipe de desenvolvedores faz é distribuir virtualmente bichinhos coloridos ao redor do globo terrestre para adultos idiotizados e deslumbrados correrem atrás.
Apesar das inúmeras possibilidades de começarmos a realidade aumentada de formas incríveis e impulsionadoras da evolução humana, decidimos começá-la caçando tartarugas e pikachus. É uma sociedade de bunda-moles.
Pokémon Go gif
Enquanto brincamos de caçar monstrinhos virtuais…
E que ninguém se iluda: o autor desse texto curte seriados do Netflix e até virou alguns jogos de Playstation. Então, qual a diferença? Por que ir num estádio de futebol ou jogar games em sua casa não é um sinal de infantilidade, mas brincar de Pokémon Go nos parques e ruas o é? Porque participar de um evento cultural ou ir ao cinema não denuncia a imbecilidade de nossa sociedade, mas brincar de Pokémon Go sim?
A questão é a noção intuitiva de locus, de espaço delimitador no qual podemos nos permitir transitar entre a realidade adulta e o nosso imaginário de criança (e sim, todos tempos um lado criança e esse lado precisa ser exercitado). A diferença entre a criança e o adulto é justo essa: ambos podem brincar, ambos podem se entregar à diversão inconsequente e irrefletida (e devem, até por questão de sanidade mental), mas enquanto a criança o faz em todo em qualquer lugar, por estar amparada pelos pais ou responsáveis, o adulto consegue nitidamente perceber o espaço e tempo que são delimitadores da ludicidade de um lado e da responsabilidade de outro. Se alguém não concorda com isso, então convido que faça sexo ou se masturbe em uma calçada, ou pule amarelinha no meio de um julgamento do tribunal do júri.
A extinção do locus, do espaço e tempo delimitadores da ludicidade e da responsabilidade, é que estabelece o marco a partir do qual nossa sociedade se imbeciliza.
Claro, isso ocorreu pois, apesar da ideia ridícula, a criação do Pokémon Go demandou considerável investimento. E esse tipo de investimento só grandes empresas podem fazer E grandes empresas investem naquilo que é popular.
E se é popular comportar-se como retardado, bom é esse o projeto que será desenvolvido, pois afinal o objetivo é lucrar.
Disso decorre, portanto, uma crítica ao capitalismo? De forma nenhuma. Decorre, sim, um questionamento sobre que tipo de capitalismo queremos.
E a esse respeito, a histeria com o Pokémon Go está sendo tanta que há textos na internet brasileira tratando-o como formidável maravilha e uma prova do êxito do capitalismo.
Ao ler o texto no site Spotniks, cheguei por um minuto a pensar que se tratava de ironia – mas jamais devemos subestimar a capacidade humana de levar muito a sério o que é puramente cômico. Tratou-se, isso sim, de piada pronta.
No texto, chega-se a insinuar que são coisas como Pokémon Go que conferem sentido à vida! É nesses momentos que nossos antepassados chorariam de vergonha e fundamentalistas islâmicos sorririam.
Quem me acompanha sabe que estou longe de ser simpático ao socialismo. Mas se os capitalistas brasileiros entendem que esse jogo é a prova cabal do sucesso desse sistema econômico, então começamos a entender a razão pela qual o Brasil nunca conseguiu ser um país realmente capitalista: com defensores assim, sequer é preciso adversários.
Mas, como disse, o verdadeiro problema não é se o capitalismo é bom ou mal. O problema é que tipo de capitalismo nós queremos? Um capitalismo que impulsione a evolução humana ou um capitalismo que nos infantilize? Um capitalismo que nos ajude a superar ou ao menos sublimar nossos instintos mais destrutivos ou um capitalismo que nos transforme em consumidores zumbificados?
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E quanto à tecnologia, queremos uma tecnologia que desperte e desenvolva nossa consciência coletiva e nos lance em direção ao transumanismo ou que nos seduza para que continuemos no perpétuo estado de sonambulismo?
É verdade que, hoje em dia, o cidadão da classe média de qualquer país desenvolvido, ou mesmo “em desenvolvimento”, vive com muito mais conforto do que um monarca europeu de quinhentos anos atrás.
Mas também é verdade que este conforto fácil está fazendo com que esqueçamos uma lição que nossos antepassados e os habitantes do ambiente árido do Oriente Médio aprenderam:
de que a vida é essencialmente difícil e problemática;
de que o mundo é inafastavelmente hostil;
de que, em última instância, apenas aqueles que desenvolvem a capacidade de resistência e tolerância à dor conquistam o direito de estar vivos;
de que você pode ser amoroso, gentil e ter compaixão sim, mas antes de tudo isso precisa ser forte, senão perece;
de que você também pode divertir-se e usufruir das coisas boas das da vida, mas que antes disso e a todo momento precisa ser capaz e estar pronto para passar por privações e renúncias, senão não terá direito à diversão e a tudo de bom que a vida pode oferecer.
Sim, pois ninguém nasce com direito a nada, muito menos às coisas boas da vida – elas precisam ser conquistadas a cada momento. Precisamos ser merecedores delas.
E nosso atual conforto e tecnologia foi conquistado graças ao árduo esforço de nossos antepassados, mas tudo o que sabemos fazer é utilizar essa tecnologia para disseminar bobagens infantilóides.
Vivemos em uma sociedade de vítimas: todos acham que o mundo lhes deve alguma coisa, e muitos esperam que o Estado providencie o pagamento dessa dívida.
É como se esse débito hipotético fosse um substitutivo para os pais que nos protegiam na infância mas que renunciam a esse papel em nossa vida adulta.
“Abandonados” enquanto adultos, recorremos a essa noção de que somos credores do mundo, e passamos a exigir da sociedade e do Estado a mesma proteção e segurança de papai e mamãe nos garantiam.
Reivindicamos direitos, protestamos por compensações e subsídios governamentais. Nós, filhos de um ocidente rico e apegado ao conforto, estamos esquecendo como se faz para crescer, e isso convém a quem nos quer como consumidores alienados.
Mas a verdade é que ninguém nos deve coisa alguma, e que não somos vítimas senão das circunstâncias: a condição adulta é a condição do constante e inafastável “abandono” em um mundo que se afigura, quando estamos despidos dos frágeis e passageiros confortos da vida moderna, a um só tempo hostil e desafiador.
Para alguns, a brincadeira infelizmente é de outra ordem. | pokémon go
…para outros, a brincadeira infelizmente é bem diferente.
Mas enquanto nós esquecemos dessa lição e nos consideramos, por um ou outro motivo, credores-vítimas perante a sociedade que nos deve algo, em outros lugares do mundo há pessoas que jamais se esqueceram dessa lição.
De longe, tais indivíduos observam os homens e mulheres infantilizados e auto-ridicularizados de nossa sociedade correndo atrás de monstrinhos imaginários, e compreendem que estão diante de um alvo fácil, hipnotizado por uma falsa sensação de segurança.
Basta a tais indivíduos, a seguir, pisar no acelerador de qualquer caminhão, apertar o gatilho de qualquer arma, para assistir suas vítimas aterrorizarem-se quando despertam de seu sono imaturo. E aí a roda da história volta a girar.













